26 de fev. de 2012

trechos

Trecho do livro "Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi" de CECILIA GIANNETTI

Temos os fantasmas que merecemos. Eles são feitos de coisas que não cabem aqui. Vieram sem anúncio e somente quando decidiram ir embora é que percebi o quanto sempre estiveram presentes, pois, até então, nunca haviam desaparecido. Estavam aqui e agora, se há matéria, é só palavra, papel, tinta – um fantasma no envelope fechado; um fantasma dobrado na gaveta. Que meia dúzia de palavras corajosas poderiam lhes escapar lá de dentro?

Temos o diário que merecemos. Ele é doce e partido, a promessa, a emoção do começo rápido!, antes que desapareça, é meu cada ponto de tinta em suas páginas, em que me imagino reportando misérias alheias. Recuperando peças que contam a história de uma civilização. Eu deveria erguer meu museu. A construção, no entanto, resulta rapeada, sampleada, em cacos – sua confusão mesma, o começo de outra civilização. Único lugar em que me imagino existir.

CECILIA GIANNETTI nasceu no Rio de Janeiro, em 1976. Formou-se em Jornalismo em 2003 pela UFRJ. Já trabalhou no Jornal do Brasil, na Tribuna da Imprensa, e atualmente contribui para a Folha de S. Paulo. Tem contos publicados em várias antologias como 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, organizada pelo Luiz Ruffato, e também em revistas e blogs. Recentemente, Cecilia foi mandada para Berlim, participando do projeto Amores Expressos. O romance em decorrência da viagem ainda está em gestação, mas o blog narrando suas experiências demonstra sua amarga sensibilidade (http://blogdaceciliagiannetti.blogspot.com/).

Com informações de seu site disponível em: http://escrevescreve.wordpress.com/resenhas/

8 de fev. de 2012

Da série escritos 2

A janela

Fazia algum tempo. Aquela janela entre aberta me perturbava. Na verdade, chamava a atenção aqueles livros aparecendo, me olhando. Era bonito de olhar. Era como se eu acordasse e em minha frente o mar.

E eu olhando, apenas de passagem a janela. Já que o caminho era rápido. Mas o segundo andar, aquelas duas janelas me instigavam. Não pudera eu acreditar que ali viveria alguém. Então, se não estivesse, o mesmo estaria viajando, mas não estava.

Depois de tantos anos, como pude só agora saber que ali vive um homem solitário? Sim. Um promotor de justiça aposentado por invalidez. Motivo: depressão profunda.

Mas como ainda não se suicidara? Em tantos anos morando no mesmo lugar, aquele apartamento sempre fechado, justo o apartamento da minha frente. Como não fui capaz de imaginar que um ser habita aquele ambiente escuro, mas repleto de vida, de livros?

Porque não me atinei a observar mais, apurar as conversas? Ora, ando tão ocupada. Já não bastam meus problemas, o pouco tempo, não perderei tempo olhando uma janela que me contempla com livros.

Sim, perderei tempo. Eu já perdi. Eu continuo perdendo. Volta e meia, vejo-me olhando para a janela, para os livros, para a sacada fechada o mundo escuro que aquele senhor habita.
Aquele mundo de quatro paredes que é dele. O seu mundo. As suas portas. As suas janelas. O seu ar. E o sol? E a chuva? A lua? De que forma ele vê?

Não sei. Talvez sol, chuva, lua para ele não existem já que ele fez seu mundo, obteve sua escolha, certa ou não. O mundo é dele. Feio sei que não é. Somente a janela com aqueles livros, o mundo que ali se fez é justo. A janela para o mundo e a vida nos livros.