Que não seja o resumo do livro.
Abaixo uma resenha que vai me ajudar a organizar as idéis
A nobre arte de ouvir
de Marcelo Moutinho
Joe Gould, um "homenzinho alegre e macilento", era figura fácil nos bares mais ordinários do Village durante os anos 40 e 50. Gabava-se de ser o último dos boêmios e a maior autoridade dos EUA em privação: "Vivo de ar, auto-estima, guimba de cigarro, café de caubói, sanduíche de ovo frito e catchup". Sob tintas de ficção, Gould lembraria Pierre Menárd, célebre personagem de Borges, mas o notívago baixinho, com suas roupas invariavelmente grandes demais e seu ensebado portfólio repleto de rabiscos manuscritos, realmente existiu. E foi objeto de dois perfis produzidos pelo jornalista Joseph Mitchell para a revista New Yorker. Tais textos, publicados originalmente com um hiato de 22 anos, estão reunidos no livro "O segredo de Joe Gould", lançado pela editora Companhia das Letras como parte da coleção Jornalismo Literário.
Talvez somente um semanário do quilate da New Yorker pudesse bancar a demora que Mitchell em geral levava para apurar, redigir e burilar suas matérias. "O professor Gaivota" (1942), primeiro perfil de Gould, por exemplo, ficou pronto após meses e meses de conversas. A possibilidade de ouvir Joe por um longo período decerto foi fundamental para a excepcionalidade dos perfis. Colaborou para isto também a complexidade do personagem. Gould não chamaria a especial atenção de Mitchell caso fosse simplesmente mais um dos boêmios que vagavam pelas ruas da cidade. O "professor Gaivota" descendia de uma família de médicos, formara-se na Universidade de Harvard, estudara a eugenia dos índios americanos e trabalhara como jornalista. Cheio de si, malgrado a sujeira e a aparência desleixada, dormia em estações de metrô e albergues baratos. Para se proteger do frio rigoroso do inverno, valia-se de folhas de jornais entre as roupas. Mesmo nesses momentos exalava esnobismo: "Só uso o "Times".
Gould assumira uma quixotesca missão: escrever a "História Oral de Nossa Época", reunindo em dezenas de volumes conversas travadas dia após dia com desvalidos como ele. Nas palavras de Mitchell, um "repositório de tagalerice, uma coletânea de disparates, mexericos, embromações, baboseiras, despautérios", cuja idéia surgira num dia prosaico. Gould passara por um sebo onde esbarrou numa coletânea de contos em cujo prefácio o poeta William Butler Yeats assinalava: "A história de uma nação não está nos parlamentos e nos campos de batalha, mas no que as pessoas dizem umas às outras em dias de feira e em dias de festa, e na maneira como trabalham a terra, como discutem, como fazem romaria". Foi o que bastou para que Gould decidisse a partir de então dedicar todo o tempo a colher informações necessárias ao monumental livro. Sem emprego fixo, custeava suas mínimas despesas pedindo contribuições pelos bares da cidade, em nome de um tal "Fundo Joe Gould", sempre detalhando seus nobres propósitos. Entre os colaboradores, além de bêbados anônimos e turistas curiosos, constavam nomes como e.e.cummings, que chegou a dedicar-lhe um poema.
A "História Oral", segundo cálculos do próprio Gould, alcançaria nove milhões de palavras, escritas por extenso em papéis manchados de gordura, cerveja e café, e guardados na casa de amigos e numa granja, em Long Island. Ele adorava falar sobre o livro, que incluía ensaios autobiográficos e hilários estudos eivados de sofisma, como o que ironiza o uso desmedido de estatísticas pela sociedade americana, relacionando o consumo de tomates por engenheiros ferroviários ao aumento do número de acidentes de trem. Freqüentemente, Gould invadia concorridas festas no Village, onde, após alguns copos de cerveja, punha-se a recitar poemas e trechos da "História Oral", ou simplesmente a imitar gaivotas. Quando alguém tentava classificá-lo de exibicionista, emergia outro de seus mais marcantes traços: o sarcasmo. Mitchell reproduz a resposta dada por Gould à jovem que criticara sua performance durante um coquetel. Disse-lhe: "Se minha informalidade a leva a pensar que sou um bêbado bobo (...), atenha-se firmemente a essa convicção, atenha-se firmemente, atenha-se firmemente, e mostre sua ignorância".
Graças à franqueza, ganhou muitos desafetos no meio artístico e intelectual novaiorquino. Gould debochava dos colegas poetas, de religiosos e pintores ditos de vanguarda. Numa ocasião, insistiu para participar do sarau de respeitada sociedade literária, que sempre lhe negara entrada e naquela oportunidade promovia a Noite da Poesia Religiosa. Pediu licença para ler "Minha religião", poema de sua autoria. Diante da concordância, disparou: "No inverno sou budista / E no verão sou nudista". Na Noite da Poesia da Natureza, implorou para declamar outro, chamado "A gaivota". Saltou, então, da cadeira, sacudindo os braços e gritando: "Sriiic! Scriic! Scriic!".
Seus pontiagudos comentários atingiram também um "promissor" pintor que atacara quadro feito por Alice Neel, amiga de longa data: "Fiquei muito contente (...), pois é um abstracionista de sucesso, está na linha de frente da vanguarda e só se impressiona com quadros totalmente sem sentido e concluídos em meia hora". A mordacidade ganhava relevo quando as vítimas eram gente ligada à arte engajada. Teriam perdido o senso de humor e, para irritá-los, Gould revezava-se pelos cafés a declamar o poema "As barricadas": "As barricadas / E, por trás destas barricadas, (...) / Os camaradas morrem - / De tanto comer."
Na tarefa de desenhar em palavras esse fascinante personagem - arrogante, caçoante, intrometido, politicamente incorreto, por vezes grosseiro – Mitchell corria o risco de recair no melodrama. Mas sua prosa límpida foca-se na análise psicológica e contextual do enigmático Gould. Mesmo no segundo perfil, veiculado somente após a morte do protagonista e no qual Mitchell reflete sobre o desenvolvimento da reportagem, explorando suas contradições, brilha a precisão do autor, que viria a revolucionar o jornalismo, remando na maré contrária ao meramente investigativo por revestir de técnicas literárias a narrativa.
Por intermédio de uma série de descobertas do próprio Mitchell, o leitor compreende que, apesar de lidar com prática que supõe total transparência - o jornalismo -, no fundo tanto o personagem quanto o autor dos perfis em algum instante vestem máscaras. Mitchell o escutou sóbrio, bêbado, depressivo, radiante, sempre com extrema paciência. Mais como ouvinte, menos como interlocutor. Observou em minúcias o ambiente que o rodeava, desenvolvendo certa intimidade, tentando captar através da topografia uma visão mais completa sobre quem enfim seria Gould. Porém, ante a desconfiança sobre a verdadeira existência da "História oral", absteve-se de desnudá-la.
Como observa o cineasta João Moreira Salles no posfácio do livro, a construção artesanal das matérias de Mitchell liga-se à necessidade de tempo para "entender" e "mostrar" a beleza que se esconde em universos aparentemente banais. Salles sublinha que Mitchell busca na alma encantadora das ruas e nos personagens urbanos "um grande semiparadoxo: a permanência – aquilo que não muda, ou muda pouco. Mais ainda: aquilo que resiste à mudança, às vezes militantemente". Ele quer ler as entrelinhas da cidade, não seus pontos de exclamação; e explorar o "elo secreto" que há entre "lentidão" e "memória", já apontado por Milan Kundera.
A interseção de interesses entre Mitchell e Gould dá-se justamente neste anseio. Tanto um quanto o outro, cada qual a seu modo, desejou "escutar o mundo" - e registrá-lo, lutando contra o esquecimento. Após a morte de Gould num hospital psiquiátrico e a veiculação do segundo perfil, Mitchell curiosamente nunca mais publicou mais nada. Findo o misterioso Joe Gould, findo o que por anacrônico lhe era caro, Mitchell preferiu calar-se também.
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